Natalia e Nicolas (arquivo pessoal)
Quando eu saí da consulta do neuropediatra que finalmente deu um nome para minhas angústias, cheguei a pensar que nada na vida poderia superar o tamanho daquela dor. Estava enganada.
O diagnóstico de autismo fez brotar em mim um pânico duplo instantâneo: o de morrer sem conseguir prepará-lo para viver sem mim e o do preconceito que ele poderia sofrer por ser diferente.
Eu sabia que em algum momento da vida ele sentiria discriminação, ainda mais por vivermos em um país onde a tiração de sarro é quase que parte da identidade do brasileiro-típico. Afinal de contas, somos reconhecidos mundialmente por sermos ‘brincalhões’, ‘piadistas’, ‘extrovertidos’. Vemos a diferença como defeito e cultuamos líderes neo-nazistas retrógrados, além de outros milhões de motivos que expõem a chaga do subdesenvolvimento cultural e espiritual do nosso povo que, agora, não vêm ao caso.
Eu sabia que o preconceito viria e corri para blindar o meu filho contra ele. Junto com as intervenções todas em busca do desenvolvimento da linguagem e da socialização, o reforço da autoestima virou quase que uma obrigação. Sabemos da importância da autoconfiança para o sucesso de todo o tratamento. Usamos técnicas específicas, elementos lúdicos, reforçadores e tudo o que estiver disponível para que nosso filho acredite que, sim, ele é capaz.
Ele é um autista leve e verbal. Adquiriu a fala beirando os 4 e estuda em uma escola regular. Esta é nossa terceira tentativa desde que o colocamos na escola. Nicolas acaba de completar 7 anos e, apesar de ser verbal, ainda tem dificuldade de se expressar plenamente. Contar histórias com começo-meio-fim exige dele um esforço tremendo. Manter o foco também é um desafio.
Somos pais presentes, fazemos reunião com a coordenação pedagógica pelo menos uma vez por mês, a psicóloga está na escola a cada bimestre, o psiquiatra esteve lá em fevereiro, mas nada disso foi capaz de impedir que meu filho sofresse agressões intencionais, feitas de maneira repetitiva, o que caracteriza o bullying. A palavra que já causa arrepio em pais neurotípicos, tem uma gravidade superior para pais de crianças do espectro.
A gente pensa: eles já têm tantos desafios na vida, ainda precisam passar por isso? Pois é.
Os sinais do bullying
Sempre que eu perguntava a ele sobre seu dia na escola, nunca a resposta era relacionada a uma atividade, uma novidade, uma brincadeira. Era sempre sobre os seus ‘não-amigos’. Ele me dizia ‘fulano não gosta de mim’, ‘ciclano não é meu amigo’.
Quando dávamos bronca , ele sempre fazia um comentário com palavras negativas inéditas e bem pesadas. Ele dizia ‘eu sou um inútil’, ‘eu sou um desastre’.
Começou, estranhamente, a se preocupar com o corpo .’Não vou almoçar porque minha barriga vai explodir’. ‘Não posso comer porque sou gordo’.
A lancheira dele ficava encaixada na parte externa da mochila e ele adorava exibí-la. De uma hora para outra começou a guardar a lancheira dentro da mochila.
Como descobrimos
Fomos ligando os fatos e um episódio recente oficializou a crueldade. Sempre que ele se lamentava sobre seus ‘não-amigos’, tentávamos desviar o foco, mostrando para ele o quanto ele era querido por tantos outros.
Sempre orientamos que ele relatasse os incômodos ao bedel, à professora, ao coordenador. Em todas as minhas reuniões da escola, expunha esses sinais e eles diziam que nada justificava a preocupação já que o Nicolas era muito querido pela turma, ‘uma criança adorada por todos’, era o mantra repetido por eles.
A princípio a reclamação sobre os ‘não-amigos’ parecia infundada. Por mais que chamássemos a atenção da escola para essa nossa preocupação, eles faziam questão de minimizá-la. Mas aos poucos fui vendo que as reclamações do Nicolas começaram a ser mais frequentes, as palavras inéditas-estranhas mostravam uma auto-imagem completamente distorcida daquela que trabalhávamos em casa.
Aí, na quinta passada, ele entrou chorando no carro. Perguntei o que tinha acontecido e ele disse que ao perguntar a um dos ‘não-amigos’ porque não o deixava em paz, o menino teria dito ‘porque eu gosto de fazer bule (sic) com você’.
Estava oficializado ali o meu maior pesadelo. O menino, de forma consciente, sabia que fazia mal para o meu filho e, mais, sabia que a ‘brincadeira’ tinha nome.
O que fazem os meninos
A partir daí viramos detetives contumazes e descobrimos que:
escondiam a lancheira dele e riam enquanto ele a procurava;
apelidos como ‘mané’, ‘baleia’, ‘gorducho’ e ‘bisnaguinha’ eram frequentes;
chegaram a abrir sua mochila e danificaram seus materiais.
Não tenho provas, não tenho vídeos, não tenho fotos, mas eu tenho a palavra do meu filho, seu comportamento e, principalmente, a fala do seu ‘não-amigo’ que fazem eu acreditar que isso tudo aconteceu bem debaixo do meu nariz.
O que aprendemos
Autistas têm dificuldade de comunicação, mas se comunicam de outras várias maneiras. Com o olhar, com o corpo, com o comportamento. O discurso não verbal geralmente nos diz muito mais do que as palavras.
nunca menospreze suas ‘falas’. Por mais simples ou vagas que sejam.
todo o esforço de proximidade e interação com a escola nunca será suficiente. Infelizmente não dá para dormir no ponto, não dá pra relaxar. Reuniões, visitas fora de hora e até mesmo conversas de corredor com outros funcionários podem nos dar pistas importantes se está mesmo tudo bem.
desconfie da autossuficiência da escola. Por mais bem intencionada que seja, por mais aberta que seja, essa falta de questionamentos ou esse ‘mar de rosas aparente’ pode esconder alguma negligência.
E agora?
Já movemos o mundo desde então e recebemos um retorno positivo da escola que prometeu várias providências. Optamos em dar o último crédito já que, tirando os ‘não amigos’, o Nicolas adora o ambiente escolar, tem outros vários amigos e se desenvolveu bastante lá dentro, está inclusive alfabetizado. Pesamos também o fato de que tirá-lo de lá agora, antes até do fim do semestre, poderia significar ainda mais perdas, além de estarmos de alguma forma sendo contraditórios no discurso de enfrentamento de dificuldades e autoconfiança que tanto trabalhamos em casa. Queremos esgotar as possibilidades e lutar pela inclusão de fato, já que, se alguém tiver que sair da escola, não será ele.
Apelo
Acho que todo mundo já sofreu bullying na vida. A diferença é que, de alguma maneira, tivemos repertório para lidar com isso. Uns usaram a violência física, outros devolveram na mesma moeda, alguns trataram em análise. Ninguém morreu, é verdade, mas quem já sofreu esse tipo de violência tem ao menos uma vaga dimensão do estrago que ela pode causar na vida. Complexos adormecidos, dificuldades de relacionamento, dependência, agressividade….os efeitos são diversos. O bullying é grave em qualquer situação, mas no caso de autistas, estamos falando da forma mais cruel das humilhações, com quem não tem recursos para se defender.
Pensando no alcance do Lagarta, talvez esse post possa chegar até os pais dos agressores do meu filho. Por isso, fica aqui o meu apelo. É sua obrigação se indignar com a valentia sem medida, que geralmente vem acompanhada da falta de respeito. Olhe de fato para seu filho, observe como ele se comporta com amiguinhos e, pelo amor de Deus, não ache natural que ele ria da dificuldade do outro. Isso sim, é anormal.
Natalia Rinaldi, mãe do Nicolas
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