Tradução livre do texto “Seeking precise portraits of girls with autism”, escrito por Somer Bishop para o site Spectrum News.
Sutil, significante. Essas duas palavras resumem muito bem os sintomas de muitas garotas com autismo. Como muitos profissionais do meu campo de atuação, eu acompanhei essa sutileza em primeira mão.
Uma garotinha de 6 anos que eu conheci há alguns anos atrás pareceu, à primeira vista, ter boas habilidades sociais. Ela respondeu de forma apropriada quando me apresentei, elogiou minha roupa e respondeu educadamente a todas as minhas questões. Somente alguns dias depois, quando a vi novamente, entendi o motivo da preocupação da família: ela fez movimentações quase idênticas, como se nossa interação fosse parte de uma peça que ela tinha ensaiado.
Eu também conheci uma adolescente com autismo que era muito inteligente. Porque ela não conseguia se relacionar com as outras garotas na sua escola, ela começou a interagir exclusivamente com os meninos, cujo comportamento social ela achou mais fácil de imitar. Ela até mesmo passou por um momento de “querer ser um garoto”, com o raciocínio de que ela teria mais sucesso navegando o mundo social como um homem.
Os últimos anos viram uma explosão de estudos com o objetivo de apoiar essas observações pontuais de como o autismo se apresenta de forma diferente nas garotas. Essa é uma evolução muito bem-vinda, já que a compreensão da apresentação única que o autismo tem nas meninas vai nos ajudar a identificar melhor e a tratar o transtorno neste público.
Reconhecer consistentemente o autismo em meninas pode ser desafiador. Isso acontece não só porque as garotas com autismo são tão diversas quanto qualquer outro grupo de indivíduos com o transtorno, mas também porque a maioria dos testes e ferramentas para diagnóstico de autismo foram desenvolvidos primariamente através da observação de comportamentos em meninos.
Como consequência, nós podemos ainda estar perdendo meninas cujos sintomas não batem com a apresentação padrão dos meninos. Esses desafios no reconhecimento podem também ajudar a explicar por que muitos pais dizem que os médicos inicialmente repudiam suas preocupações acerca de autismo em suas filhas. Se eu não tivesse visto aquela garotinha de 6 anos mais uma vez, eu também seria culpada disso.
Caricaturas Sociais
Os primeiros estudos sobre as diferenças entre os sexos no autismo sugeriram que, comparadas a meninos autistas, as meninas com o transtorno teriam menor inteligência e sintomas mais severos. Mas porque esses estudos foram conduzidos em um tempo em que crianças com autismo de auto funcionamento (ou leve) tinham poucas chances de ser identificadas, provavelmente, eles perderam garotas com altos QIs e dificuldades sociais mais leves — cujo autismo pode ter sido particularmente difícil de detectar. Excluir este grupo, não só iria rebaixar a média do QI das meninas com autismo, como também iria inflacionar a taxa de meninos para cada menina com autismo, que atualmente, é de 4 para 1.
À medida em que os médicos reconhecem números maiores de meninas e mulheres com autismo de alto funcionamento, nossas visões ultrapassadas sobre as diferenças entre gêneros no autismo estão desmoronando. Pesquisadores estão investigando se as meninas autistas apresentam dificuldades sociais e comunicativas menos severas e menos comportamentos repetitivos que os meninos com o transtorno.
Alguns pesquisadores acreditam que as meninas são melhores que os meninos em camuflarem seus sintomas, particularmente durante interações altamente estruturadas como uma visita ao médico. Como exemplo, um colega meu descreveu garotas autistas como “caricatas” em interações sociais. Essas meninas podem estar motivadas a interagir, mas seus comportamentos parecem exagerados.
Porque os sintomas de autismo são tão variáveis em meninas, o time por trás da última versão do DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais) enfatizou que qualquer exemplo no livro é apenas isso: um exemplo. Infelizmente, a habilidade de um médico de efetivamente ir além das descrições escritas depende pesadamente da experiência — não apenas com garotas autistas, mas também com garotas típicas. Afinal, se os médicos não estão super letrados em como uma garota de uma determinada idade e nível de desenvolvimento se comporta, então, eles vão ter muitas dificuldades para avaliar as habilidades de uma criança com autismo.
Até que estejamos confiantes de que nossos métodos de avaliação podem, com confiança, reconhecer autismo em meninas, os médicos terão que recolher evidências das dificuldades da criança através de outros meios. Isso pode envolver observar a menina em um ambiente mais natural para ela, onde ela possa interagir com seus pares.
Recrutando meninas
Enquanto isso, para entender melhor como meninas e meninos com autismo diferem, pesquisadores estão ativamente recrutando mais meninas para os estudos — um movimento que nós esperamos que vá trazer mais exemplos concretos de como o autismo se apresenta em garotas. Mas nós também deveríamos considerar meios menos tradicionais de explorar as diferenças entre os sexos.
Por exemplo, ao invés de rankear garotas autistas usando os instrumentos existentes, médicos especialistas poderiam observá-las e compará-las com garotas que não têm o transtorno. Essa abordagem nos forçaria a gerar exemplos frescos das formas com que as dificuldades de interação, comunicação e os comportamentos repetitivos se manifestam em meninas. Baseados nessas informações e em entrevistas com os pais e professores das meninas, os médicos poderiam começar a identificar comportamentos que podem ser específicos de meninas com autismo. Nós poderíamos, então, verificar se os questionários e métodos de triagem atuais capturam adequadamente esses comportamentos.
Também é importante ressaltar que gênero é somente um dos fatores que podem influenciar a aparência do autismo. Em um encontro sobre diferenças de gênero no ano passado, Ami Klin, diretor do Marcus Autism Center em Atlanta, afirmou que outras variáveis demográficas, como a origem étnica e o status socioeconômico, podem afetar o diagnóstico de autismo. Tanto médicos como pesquisadores precisam considerar com cuidado todas essas variáveis.
Nós também deveríamos manter a mente aberta quanto às nossas concepções a respeito de meninas autistas. Por exemplo, devemos estar tão abertos à possibilidade de haver poucas diferenças entre meninos e meninas autistas como estamos à possibilidade de haver muitas.
Ao mesmo tempo, devemos focar em identificar de forma apropriada tantos meninos e meninas com autismo quanto for possível, para que essas crianças tenham acesso às intervenções. Mesmo que uma garota tenha menos dificuldades que outra criança com o transtorno, esses problemas podem, sem dúvida, ter um tremendo impacto na vida dela.
Somer Bishop é professora assistente de psiquiatria na Universidade da Califórnia em São Francisco.
Imagem: Shutterstock
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