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Entendendo a genética do autismo

Conhecer a origem de uma condição de saúde, seja ela física ou mental, é algo muito importante para as pessoas que se encontram diante de um diagnóstico. As respostas para as perguntas “por que acontece” e “como acontece” influenciam toda a sua maneira de lidar com o assunto, desde a aceitação até a busca da ajuda necessária e a tomada de decisões práticas.

Essa é uma questão problemática quando falamos em autismo. Apesar do grande avanço no conhecimento científico que ocorreu nas últimas décadas, as informações disponíveis para as famílias e a sociedade em geral permanecem confusas e muitas vezes contraditórias. Além do fato da própria descrição do quadro clínico do autismo ter sido alvo de muitos questionamentos e polêmicas ao longo da história, as primeiras tentativas de explicar sua gênese foram desastrosas. Basta lembrar do massacre emocional causado pelas interpretações psicanalíticas e a teoria das mães geladeiras.


Nas décadas que se seguiram, alguns pesquisadores tentaram encontrar indícios de alterações biológicas nas crianças autistas, mas os resultados desses estudos não puderam ser replicados, o que comprometeu sua confiabilidade e consequente aceitação no meio científico. Tempos depois, o reconhecimento da amplitude do espectro do autismo levou a um aumento vertiginoso de diagnósticos, atordoando a todos com o que parecia ser uma epidemia. O medo e a incerteza que se instalaram deixaram o terreno fértil para todo tipo de suposições na busca pelos “culpados”: vacinas, intoxicações, poluentes, alimentos.

Mais recentemente, a temática da genética do autismo tem estado em evidência. Não que seja exatamente uma novidade na área: Hans Asperger já falava sobre a herança genética do autismo no início da década de 40, tendo apenas suas observações clínicas como base. Era inevitável, portanto, que o desenvolvimento das técnicas de biologia molecular e a interação da genética com outras áreas de pesquisa trouxessem descobertas cada vez mais significativas.

Mas o que chega desse empolgante volume de conquistas ao público leigo nem sempre reflete de modo realista o caráter promissor das pesquisas. Empresas de capital privado apresentam novos resultados de pesquisas com exagerado otimismo, divulgando de forma precipitada e duvidosa promessas de diagnóstico genético específico (através de exames modernos – e caríssimos), de tratamentos personalizados e mesmo de cura. Do outro lado, textos escritos por leigos aparecem com certa frequência nas mídias sociais com análises bem-intencionadas, porém, equivocadas da matéria, minimizando a influência da herança genética.

Genética do autismo

O que, afinal, sabemos de verdade? Muita, muita coisa mesmo. A proposta deste texto é rever e aprofundar alguns conceitos fundamentais para a compreensão do papel da genética no autismo. O desafio de explicar um assunto dessa complexidade de uma maneira que todos entendam é enorme. Mas, para a comunidade autística, penso que é algo que não dá mais para ser adiado.

Escolhi dividir esses conceitos em alguns tópicos principais e adicionei adendos contendo observações complementares aos temas.

1 – Um pouco de genética

O material genético das nossas células contém todas as informações a respeito da constituição do nosso organismo, das particularidades de estrutura e função de todos os nossos órgãos e sistemas. Esse material está distribuído em 23 pares de cromossomos, metade herdado do nosso pai, metade da nossa mãe. Cada cromossomo, por sua vez, contém centenas de trechos (sequências de nucleotídeos) que chamamos de genes.

Genes são as unidades fundamentais da hereditariedade. Cada um deles codifica uma proteína que vai atuar em algum dos milhares de processos biológicos do nosso organismo. Sua localização física no nosso genoma (qual posição ocupam em qual cromossomo) é conhecida como locus e é por meio dela que detectamos variantes (sequências diferentes das usuais, que podem ser responsáveis por variações individuais e desordens orgânicas).

Existem, também, trechos do nosso DNA, intercalados com os genes, que não codificam nenhuma informação e que, até recentemente, pareciam apenas sequências vazias.

Vamos tentar visualizar essa engrenagem biológica com uma analogia. Imaginem um grande escritório de uma grande fábrica. Nesse escritório encontramos 23 pares daqueles arquivos de aço antigos, cada um deles com várias gavetas, e dentro de cada gaveta muitas pastas de arquivos contendo informações a respeito de centenas de itens produzidos nessa fábrica. Cada par de arquivos de aço é numerado de 1 a 23 e cada um deles, individualmente, recebe uma letra (m de mãe e p de pai). Cada dupla tem o mesmo tamanho, o mesmo número de gavetas e pastas tratando dos mesmos assuntos (itens da fábrica) em seu interior. Bom, pra falar a verdade, só 22 duplas seguem essa regra. O par de arquivos com número 23 é diferente (cromossomos sexuais) e contém informações bem específicas.

Até aqui tudo bem, certo? Então vamos ver como isso funciona (alerta: usei números aleatórios e fictícios, apenas a título de ilustração). A maior parte das pessoas acredita em algo mais ou menos assim: pegamos as duas pastas de número 27 das gavetas de número 5 dos arquivos 16 m e 16 p, misturamos as informações que elas contêm, e assim obtemos a instrução/ordem para “produzir” um item da fábrica.

Por exemplo, um traço físico simples, como a cor dos olhos. Pega a informação do gene da mãe, a informação do gene do pai, faz a “média” e chegamos na informação final desejada. Como o “A” e o “a” das aulas de biologia do colégio, originando as combinações AA, Aa, aa, lembram? Pois é, infelizmente pouca coisa da nossa herança genética é simples assim… Sim, existe a questão da dominância (quando um gene tem mais “força” para se expressar do que outro), mas esse tipo de relação direta entre um único gene e uma característica orgânica ou uma doença/ transtorno é rara. Na maior parte das vezes, vários genes estão envolvidos (herança poligênica). Inclusive no exemplo que citei, a cor dos olhos, que é, na verdade, determinada por informações contidas não apenas em um, mas em vários genes.

Além disso, o escritório da fábrica parece ter sido organizado por um gerente obcecado em não deixar o concorrente ter acesso fácil às instruções de produção de cada item: algumas pastas contêm informações que alteram as informações de outras pastas, mesmo que localizadas em arquivos distantes. Pois é, a pasta 14 da gaveta 3 do arquivo 7 m pode conter informações que modificam as instruções contidas na pasta 32 da gaveta 8 do arquivo 22 p. Uma pode até “anular” a determinação da outra.

E sabem aquelas pastas que pareciam vazias (trechos não codificadores do nosso DNA)? Estamos descobrindo que, embora não contenham informações próprias de como fabricar algum item, elas podem dizer se os itens de outras pastas devem ser produzidos ou não. Essa regulação dos genes (aumento ou diminuição da atividade do gene e produção da proteína que ele codifica) é chamada modulação, e é muito importante para nosso desenvolvimento e nossa adaptação às circunstâncias ambientais.

Como exemplo, podemos citar o gene que codifica a lactase (enzima que digere a lactose, açúcar do leite) e que é comumente desligado em alguns grupos étnicos após a infância, quando o leite não é mais tão necessário. Portanto, a interação entre os diferentes trechos do nosso DNA é muito mais complexa e dinâmica do que imaginamos, e pode ocorrer em diferentes fases ao longo de toda nossa vida.

2 – Do genótipo ao fenótipo

Chamamos de genótipo o conjunto de genes de uma pessoa, sua constituição genética. Um mesmo pai e uma mesma mãe podem originar incontáveis combinações de códigos genéticos, pois a divisão das pastas de arquivos na formação dos gametas (óvulos e espermatozoides) não ocorre “em bloco”; é mais como se elas fossem embaralhadas. A gama de possibilidades que se abre garante a diversidade da espécie e é o que nos torna únicos.

Fenótipo é o termo que se refere às características observáveis de um organismo, que resultam das instruções provenientes dos nossos genes somadas às influências do ambiente. Essas características podem ser estruturais (anatômicas, tais como altura, formato do nariz, cor do cabelo etc) ou funcionais (bioquímicas – como o funcionamento de hormônios ou enzimas – ou comportamentais).

Há várias maneiras de se observar, medir ou descrever essas características, de acordo com a natureza delas e também de acordo com o conhecimento e/ou tecnologia existente. O autismo é uma condição identificada com base numa constelação de comportamentos. Ou seja, dentre os inúmeros comportamentos que exibimos, alguns deles devem ter particularidades tais que nos permitem diferenciá-los da norma ou padrão e ainda assim, ser específicos a ponto de constituir um quadro clínico que seja distinguível de outras condições do neurodesenvolvimento (TDAH, distúrbios da linguagem ou da aprendizagem) ou de outras alterações neuropsiquiátricas (TOC, Transtorno de ansiedade etc): o fenótipo do autismo.

Como foi dito no início do texto, confusões na identificação e definição deste fenótipo foram frequentes desde as primeiras descrições. Não é nada difícil entender o porquê. O autismo abrange manifestações clínicas muito diversas, tão variáveis que muitas vezes nem parecem pertencer a uma mesma categoria diagnóstica. Alguns autistas não desenvolvem a linguagem oral, outros falam com fluência e riqueza de vocabulário, alguns têm dificuldades significativas na parte motora, outros têm habilidades fora do comum nessa área, alguns têm problemas sérios na regulação emocional ou na integração sensorial, outros não, e assim por diante.

Em comum, as pessoas autistas apresentam dificuldades em duas grandes áreas: 1) Comunicação social 2) Comportamentos e interesses restritos/ repetitivos, estereotipias (stimming) e alterações sensoriais. Não se trata de uma questão de graus. Existem diferenças qualitativas a serem consideradas.

No programa do Fantástico exibido em 02/04/2017, a Dra. Rosa Magaly de Morais usou o termo “autismos” para se referir ao TEA. O uso do plural é mais que apropriado para podermos discutir a condição como ela realmente se apresenta. E é justamente nesse ponto que estamos obtendo os maiores avanços na compreensão do autismo com as pesquisas genéticas atualmente.

Muitos estudos mostram evidências da participação de vários genes diferentes no autismo.

Há genes envolvidos na formação das sinapses, na adesividade neuronal, na regulação das funções sinápticas, nas células da glia que atuam na poda neuronal. Há genes relacionados tanto ao autismo quanto à deficiência intelectual, e outros relacionados ao autismo e altas habilidades. Também há várias síndromes genéticas que podem ocasionar quadro de autismo dentre suas manifestações, desde aquelas com herança monogênica ou mendeliana até outras envolvendo todo um cromossomo (Síndrome do X frágil, Esclerose Tuberosa, Síndrome de Rett, Síndrome de Willians, Síndrome de Down e outras). São muitas possibilidades.

O fato de não haver uma única variante genética ou mesmo uma única combinação de genes associadas ao autismo confunde muitas pessoas.

E, na verdade, o que os estudos revelam está de acordo com o pensamento mais atual na área: estamos falando de uma grande categoria fenotípica (TEA) que agrega subtipos que diferem quanto à herança genética, associação com fatores ambientais e manifestações clínicas. Ou seja: uma condição clínica complexa de herança multifatorial.

Mas como é possível ter causas diferentes para um mesmo transtorno?

3 – Neurodesenvolvimento

Já dissemos que o diagnóstico de TEA baseia-se na existência de comportamentos que preenchem critérios para este quadro clínico específico. Apesar de definirem tantos aspectos da nossa vida, comportamentos não podem ser medidos em exames de sangue ou de imagem. Devem ser necessariamente observados em diversos contextos. O conjunto de reações, atitudes, condutas e habilidades que uma pessoa apresenta em ambientes e situações variadas é o que conduz ao diagnóstico.

Os comportamentos associados ao TEA refletem alterações específicas de funções neurológicas e processos cognitivos (processamento sensorial, linguagem, praxias, funções executivas, etc.), que, por sua vez, são ocasionadas por variações no neurodesenvolvimento. De uma forma simplificada, a formação de todas as estruturas que compõem o sistema nervoso envolve a proliferação de células, sua migração (a “viagem” do local onde foram criadas até o local aonde vão se fixar e atuar) e sua diferenciação (como vão se transformar de modo a exercer funções específicas dentro do cérebro). Cada um desses processos ocorre obedecendo a estímulos químicos que são geneticamente programados, já a partir das primeiras semanas de vida intraútero.

Depois disso, os neurônios conectam-se uns aos outros através da formação de sinapses, onde ocorre a transmissão de sinais entre eles por meio dos neurotransmissores. Essas conexões são formadas de maneira exagerada no início da vida, mas nem todas são usadas. Existe, então, um processo fisiológico denominado poda neuronal, no qual as conexões não funcionais entre os neurônios são deletadas para que a comunicação entre uma área do cérebro e outra se torne mais eficaz. Todas essas etapas são essenciais para a “configuração” do funcionamento cerebral. Uma alteração em uma (ou mais) delas pode alterar essa configuração, afetando de formas variáveis os processos cognitivos que citamos.

Como são funções complexas, regidas pelas informações contidas em muitos genes, vários tipos diferentes de alterações genéticas podem estar envolvidas. Cada uma com suas particularidades, mas em última análise levando a alterações nas duas grandes áreas que definem o TEA. Diferentes trajetos biológicos levando a uma ampla categoria diagnóstica.

4 – Fatores ambientais

Não existe uma dicotomia entre fatores genéticos e ambientais da maneira como clamam alguns. Desde o primeiro momento após a fecundação, os seres vivos encontram-se inseridos em um ambiente com o qual interagem intimamente.

O ambiente do útero materno é o primeiro e mais importante para a formação do novo ser. Qualquer agravo à saúde materna pode interferir diretamente no feto.

A gestação, o nascimento e o início da vida (especialmente os dois primeiros anos) são períodos críticos para o desenvolvimento neurológico. Mesmo uma criança que não tenha absolutamente nenhuma alteração genética pode ter seu desenvolvimento profundamente alterado caso sofra agressões do ambiente nesse período (infecções, traumatismo craniano severo, exposição a drogas, etc.). Quem não se lembra dos casos de microcefalia relacionados à infecção das gestantes pelo zika? A questão é que fatores genéticos e ambientais atuam juntos e misturados, o tempo todo.

Vamos examinar a fenilcetonúria, doença genética por excelência, sempre lembrada quando estamos no assunto (com causa genética bem definida levando a alteração biológica facilmente detectada por exame de sangue logo após o nascimento – clássico Teste do Pezinho). Pois bem, o quadro clínico da doença (atraso do desenvolvimento neuropsicomotor, deficiência intelectual, convulsões) só ocorre pela presença de fenilalanina (um aminoácido presente em proteínas) na dieta, ou seja, com participação do ambiente. Do outro lado, a maior parte das pessoas diria que a obesidade se trata de uma condição puramente ambiental, causada pelo excesso de comida. Ainda assim, há diferenças no metabolismo (termogênese) determinadas geneticamente, de modo que duas pessoas de estrutura física e estilos de vida semelhantes podem apresentar ganhos de peso diferentes ingerindo a mesma quantidade de alimentos.

Na psiquiatria, essa íntima interação entre genética e ambiente tem contornos ainda mais difusos. Por exemplo, é observado que pais de crianças com TDAH têm mais dificuldades em termos de estabelecer disciplina coerente, rotina estruturada e relações harmoniosas. Aí alguns concluem que essa é a causa do problema de comportamento da criança – ignorando que, sendo um transtorno de elevada herdabilidade, há uma grande chance de um dos pais apresentar também o transtorno e consequentemente manifestar tais dificuldades.

Além disso, estudos já demonstraram que crianças de comportamento difícil tendem a despertar reações de antipatia e hostilidade em seus cuidadores, contribuindo para um ambiente desfavorável. As influências são bidirecionais. O fato inegável é que a participação da genética não anula a participação do ambiente e vice-versa, então a disputa que se faz entre eles é mais um exercício retórico.

5 – Diagnóstico genético

A tecnologia na área da biologia molecular realmente evoluiu muito. Já identificamos muitos genes relacionados ao autismo, mas ainda estamos longe de conseguir fazer o diagnóstico genético específico na grande maioria dos casos. Para o futuro, a definição de grupos mais homogêneos talvez possa contribuir com a pesquisa genética. Agrupar os autistas com manifestações clínicas semelhantes pode aumentar a chance de identificar as variantes genéticas associadas a elas. Uma das críticas ao desaparecimento da Síndrome de Asperger da nova classificação do DSM 5 foi justamente essa. Não por razões capacitistas como entenderam alguns, mas porque constituía um grupo mais homogêneo.

A observação clínica pode abrir caminhos para o avanço da pesquisa genética (lembrando que comportamentos refletem funções neurológicas e cognitivas ligadas a áreas distintas do cérebro, cuja estrutura e função são ligadas a genes).

Enquanto esse dia não chega, vale a pena investir em exames genéticos? Nos casos em que há suspeita de associação com uma síndrome genética, o exame pode trazer muitas respostas. Essa suspeita é geralmente levantada pelo médico quando identifica sinais dismórficos (alterações anatômicas, por vezes muito sutis, tais como formato das orelhas ou dos dedos) ou quando as manifestações não podem ser totalmente explicadas pelo autismo (hipotonia ou dificuldades motoras muito significativas, alguns tipos de epilepsia, deficiência intelectual) ou quando a evolução do paciente não ocorre dentro do esperado. Nos demais casos, há que ser considerada a limitação dos testes atuais, o custo envolvido e – talvez mais importante que tudo – o fato de que o resultado não vai alterar a intervenção terapêutica.

Entretanto, é claro que todos esperamos que, dentro de alguns anos, a área da genética possa contribuir também com informações de uso clínico.

6 – Implicações da heterogeneidade quanto a comorbidades e tratamentos

Chamamos de comorbidades os quadros clínicos orgânicos ou neurológicos que coexistem com o autismo. A frequência com que ocorrem leva a crer que possa existir uma causa em comum. Por exemplo: há evidências de que alterações relacionadas ao sistema imunológico (alergias ou doenças autoimunes) sejam mais frequentes em autistas e suas famílias. É muito provável que haja uma ligação genética comum a ambas.

Imagine que um gene codifique uma proteína que participe de uma fase da formação do sistema nervoso central e do sistema imunológico. Se essa proteína estiver alterada, pode levar a mudanças nos dois sistemas, mas isso não significa que um cause o outro (que a alergia ou o problema autoimune tenha dado origem ao autismo). Também não significa que todos os autistas tenham essa mesma alteração. Provavelmente existem diferentes comorbidades para os diferentes subgrupos do autismo.

O mesmo raciocínio vale para os tratamentos. Fica bem mais fácil entender porquê uma abordagem terapêutica funciona para alguns autistas e não funciona para outros, não é? Isso vale para o uso de medicações (lembrando que não existem medicações para autismo e sim para melhorar a qualidade de vida daqueles que apresentam alguma comorbidade ou dificuldade que seja tratada pelo remédio), dietas, terapias propriamente ditas e mesmo métodos de ensino.

Alguns conceitos importantes

1- Sobre mutações

Muitos familiares de autistas, especialmente quando não existem outros casos conhecidos de autismo nos parentes, se apegam à ideia de ter havido uma mutação nova no material genético daquela criança. A possibilidade existe, mas, até o momento, os estudos indicam que os casos causados por mutações novas parecem ser esporádicos. Técnicas mais recentes podem elucidar melhor essa questão.

Mas, se não for por meio de uma mutação nova, como pode, então, “surgir” um quadro de autismo de causa genética sem nenhum antecedente familiar? Herança poligênica pode ser a resposta. As variantes genéticas já estavam presentes nas famílias, mas não haviam formado a “combinação” que leva ao quadro do autismo nos pais ou nos outros membros da família – o que aconteceu quando se juntaram no material genético daquele filho. É como uma senha de banco: não adianta ter apenas alguns números. A senha só funciona com os números certos, na posição certa.

2 – Sobre as diferenças ligadas ao sexo

Quando fizemos a analogia com a fábrica, deixamos claro que os cromossomos sexuais são diferentes dos outros pares. Ser geneticamente homem (XY) ou geneticamente mulher (XX) implica em mudanças para o organismo que vão muito além da formação do aparelho reprodutor em si. Ainda não temos conhecimento de todos os mecanismos envolvidos, mas é como se houvesse uma “leitura” diferente do restante do material genético em função do par XX ou XY.

Em relação aos transtornos do neurodesenvolvimento (não só o autismo), o duplo X parece exercer um efeito protetor, sendo os meninos afetados com maior frequência do que as meninas. O subdiagnóstico das mulheres no caso do autismo é uma realidade, mas isso já é um outro assunto.

3 – Sobre diferentes denominações e classificações

As denominações usadas para o autismo, formal ou informalmente, ainda confundem as pessoas: autismo clássico, infantil, atípico, autismo de alto funcionamento, Síndrome de Asperger. Por isso, o termo proposto pelo DSM 5, Transtorno do Espectro Autista, talvez seja mais adequado, dando um fim a outras terminologias.

O DSM é o manual adotado pela psiquiatria americana. No Brasil, é vigente a classificação CID 10, para fins legais (é o código que dá direito a benefícios, tais como suporte educacional, renda por incapacidade, acesso a terapias, etc.). Não significa que os médicos brasileiros sejam atrasados e não conheçam os novos critérios americanos (mais um motivo de discussões em grupos de autismo), mas para emitir um relatório com validade do ponto de vista legal por aqui, é necessário utilizar essa classificação.

4 – Sobre graus ou níveis

O DSM 5 utiliza a classificação do TEA em graus ou níveis: leve, moderado ou severo. Novamente há um grande mal-entendido: os graus não se referem às dificuldades e vivências de cada pessoa e sim a necessidade de suporte da pessoa em função de sua autonomia.

Há uma finalidade burocrática nessa classificação: ela serve propósitos de políticas públicas, especialmente nos Estados Unidos, onde foi idealizada, para liberar acesso a terapias, suportes educacionais e outros benefícios. Portanto, muitas discussões a esse respeito aqui no Brasil são desprovidas de qualquer sentido.

Acredito que na maior parte das vezes em que as pessoas abordam a questão de graus ou níveis de funcionamento, geralmente se referem a questões de independência. As experiências vivenciadas no espectro inegavelmente também diferem muito nesse aspecto: temos pessoas que se deslocam com autonomia (dirigem carros, utilizam-se de transporte público), outras precisam de supervisão para atravessar a rua; alguns fazem compras e preparam suas próprias refeições, outros precisam ser alimentados; alguns têm empregos e carreiras satisfatórias, outros precisam de ajuda para usar o banheiro. Não reconhecer essas diferenças equivale a ignorar e subestimar o consumo de recursos (financeiros, emocionais, de tempo) das famílias daqueles com menor autonomia.

Quero agradecer a querida Andréa Werner, pelo incentivo para (finalmente!) escrever sobre esse assunto e as amigas Rejane Macedo Campos, neurologista infantil do Hospital Albert Einstein, e Giselle Zambiazzi, jornalista e presidente da AMA Brusque, pelas generosas revisões.

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Raquel Guimarães del Monde é pediatra

e psiquiatra infantil na Clínica Crescer.

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