“É preciso que eu suporte duas ou três larvas se quiser conhecer as borboletas. Dizem que são tão belas!” ~ O Pequeno Príncipe
A vida e os contrastes. A família do meu pai sempre foi muito humilde. Já comentei muito disso aqui. A casa dos meus avós nem tinha forração no teto. O chão era o famoso “vermelhão”. Por muito tempo, foi na base do fogão a lenha. Lembro-me de uma vez, na minha adolescência, em que fomos lá em um Fiat Uno, o carro que tínhamos na época. Uma tia avó, quando chegamos à roça, comentou: “meu sobrinho Wilson é rico”.
Alguns anos se passaram. Eu já estava morando em São Paulo, recém formada e trabalhando em uma multinacional. O RH da empresa trouxe uma série de palestras para os interessados nos mais variados assuntos. Fui em uma consultoria de moda e estilo. Lembro claramente da palestrante explicar que pessoas acima do peso ou com as pernas muito grossas não deveriam usar saltos muito finos. “Já viu como uma pessoa gorda ao lado de uma pessoa magra fica parecendo ainda mais gorda? E a pessoa magra parece ainda mais magra? É a mesma moral da história com o salto”.
Ainda na mesma multinacional, aprendo que um sabonete, para ser lançado no mercado, teria que ser avaliado pelos consumidores como pelo menos igual a algum outro que já era considerado bom. A avaliação de um produto só serve se houver um parâmetro, algo para se comparar.
E lá se vão mais alguns anos. Estou casada e Theo tem seu ano e meio. Uma amiga do Rio está de passagem por São Paulo com seu bebê, um mês mais novo que o Theo. Combinamos de juntar as duas famílias em um almoço no shopping. Theo, ainda sem diagnóstico de autismo, não tirava os olhos de seu DVD portátil. Não olhava para os lados, não notava nada nem ninguém. O filho da amiga, sentado na cadeira de frente para ele, o chamava sem parar: “Theo, o que você está comendo? Theo, o que está passando aí? Theo? Theo?”. Saímos de lá pensando “não tem nada de errado com o Theo, é o Léo que está adiantado demais para a idade. Talvez porque esteja na escola e o Theo não está”.
Parâmetros. Comparação. Contrastes. A gente não percebe conscientemente, mas o valor e os rótulos que damos às coisas são muito baseados nisso. A pessoa só é vista como muito gorda porque está ao lado de outra muito magra. O sobrinho é rico porque tem um carro – mesmo popular – em uma terra em que se anda a pé ou a cavalo. O menino só é muito adiantado porque está sendo comparado a outro que está aquém do desenvolvimento que deveria ter para a idade.
A borboleta é bonita, mas fica ainda mais linda quando comparada a seu estágio anterior: o de larva ou lagarta.
Aí está o segredo do porquê pais de crianças com deficiências supervalorizam as pequenas coisas. Os pequenos passos. As pequenas vitórias. Porque, um dia, foram jogados no chão. Um dia, ouviram de um médico um prognóstico desolador. Ouviram uma fono dizer “não posso te garantir que ele vá falar”. Uma psicóloga dizer “não posso te dar nenhuma certeza sobre o tanto que ele vai progredir”. Em uma vida sem certeza alguma, com um prognóstico muito ruim, em um cenário de deficiências graves, qualquer ganho tem uma dimensão enorme. Qualquer palavrinha, qualquer aprendizado – por mínimo que seja – fica multiplicado por mil.
E os dias bons são absurdamente celebrados porque há os dias muito ruins. O sol depois de uma tempestade é o mais bonito de todos. É preciso escuridão para se ver, com mais clareza e beleza, as luzes da aurora boreal. É preciso suportar algumas larvas para se ter borboletas. O beijo e o carinho espontaneamente dados após a pior das crises são os melhores do mundo, e têm o poder de sarar qualquer dor no coração.
Para quem vive em clima ameno, qualquer pingo é tempestade. Para quem sabe reconhecer a verdadeira tempestade, basta esperar o arco-íris.
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